Um sorriso

Por Amilcar Bettega*

 

 

Ela vinha chorando, de braço com a outra, as duas vestidas iguais, camisa branca com gola e punhos verdes. Pareciam irmãs, mas sem dúvida eram colegas de alguma agência imobiliária, em seus horários de almoço. Imobiliária ou laboratório de análises clínicas – não consegui ler o que estava junto ao logotipo no bolso da camisa.

Ela vinha chorando e sua boca fazia um arco para baixo como faz a da minha filha de seis anos quando está descontente com alguma coisa. Certamente por isso, ela de repente me pareceu uma criança vestida com roupas de adulto, uma criança atendente de uma agência imobiliária ou de um laboratório de análises clínicas no centro.

Quando percebi, de longe, que ela chorava, pensei logo em algo grave, como uma doença (dela ou na família) ou mesmo a morte de um parente próximo (pai ou mãe; era muito jovem para ser casada e ter filhos). Mas quando ela já estava a poucos passos de mim tive a impressão de que era menos dramática a causa do seu choro, talvez uma briga com o namorado ou uma injustiça no emprego. E quando, finalmente, ela cruzou por mim, quase roçando meu braço, creio ter percebido a ponta de um sorriso em seu rosto ainda molhado pelas lágrimas. Um sorriso reproduzido, com sincera alegria, pela amiga, que não soltava o seu braço.   

***

 

Eles vinham na ponta da passarela para pedestres que sobrepassava a grande avenida. Lá embaixo, o sol rasante deixava um reflexo amarelo no riacho sujo que corria em um valão entre as duas vias da avenida. Eu estava na outra extremidade da passarela, a uns trinta metros. Eles vinham demasiadamente devagar. Em seguida percebi que o homem trazia no colo um bebê, minúsculo, e ela vinha agarrada ao seu braço. Caminhava, pareceu-me, com dificuldade, e já à altura do meio da passarela pude ver com mais nitidez o seu rosto. Ela chorava.

Ela vinha chorando, de braço dado com o marido que carregava o bebê minúsculo. O bebê estava coberto por um pano branco. A expressão dela era de dor, embora fosse evidente para mim que ela não sofria nenhuma dor física. O marido caminhava muito devagar, não sei se porque ela não podia acompanhar um passo mais rápido ou se era por cuidado com o bebê.

O bebê estava coberto com um pano branco, todo ele coberto, inclusive a cabeça.

Não, não pode ser isto, eu pensei, e quase com um alívio, disse para mim mesmo que é normal, em dias de muito calor, os pais cobrirem inteiramente os bebês, inclusive o rosto.

O bebê era minúsculo, sem dúvida com poucos dias. Eles vinham devagar. Eu também diminuí o passo. Quando cruzaram por mim, muito lentamente, e mesmo depois, fiquei olhando para a mulher (cheguei a virar o corpo e ficar ali parado no meio da passarela) para ver se ela trazia uma ponta, uma pontinha só de sorriso.


 

AMILCAR BETTEGA nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. Doutor em letras pela Universidade Sorbonne Nouvelle, também atua como tradutor. É autor de O voo da trapezista (prêmio Açorianos), Os lados do círculo (prêmio Portugal Telecom), Barreira (finalista do prêmio São Paulo) e Prosa pequena, além deste Deixe o quarto como está, lançado em 2002, vencedor do prêmio Açorianos e menção especial do prêmio Casa de las Américas, em Cuba. Em 2010 foi escritor residente do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Seus livros e contos foram publicados em países como Portugal, Espanha, Itália, França, Estados Unidos, Luxemburgo, Suécia e Bulgária.
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