Velho é velho

12/08/2021

 

Sou apenas um ano mais nova do que Arnaldo Antunes, que disse “que a coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer”. Estou próxima dos 60, que é, no mínimo, uma idade estranha. Não se pode ainda chamar de “velha” uma pessoa de 60, mas, certamente, é já a idade da iniciação à velhice. Daí para a frente, a perspectiva no horizonte próximo é ser velha e, no horizonte distante, esperar a chegada da “indesejada das gentes”. Não tenho problemas com o adjetivo “velha”, que prefiro a “idoso” e aos eufemísticos “terceira idade” ou, pior, “melhor idade”. Velho é velho, assim como criança é criança e trata-se de um fato objetivo que não precisa ser edulcorado.

Ultimamente, me olhando no espelho com mais atenção, não é sempre que me reconheço, ou não como aquele rosto que sempre me habituei a ver. Creio que esse estranhamento se deve sobretudo às mudanças que ocorrem na área dos olhos: as pálpebras caem e se grudam à pupila; o formato e a abertura do olho diminuem e, embaixo dele, formam-se bolsas e pequenas depressões. Mudando os olhos, muda toda a configuração gestáltica da face, a expressão se altera e, junto com as rugas e a pele mais mole, a imagem no espelho é outra. Assustada de início (e mais feia), tenho aprendido lentamente a gostar dessa outra que sou eu. Há algum tempo decidi não fazer intervenções no meu rosto, que até poderiam me devolver alguma beleza perdida. Não é só por uma questão de princípios (o que seria meio bobo), mas principalmente porque acho bonito o processo de transformação por que estou passando, por que estão passando meu corpo e o rosto. De certa forma, esse processo acompanha as mudanças mentais, como uma memória mais flutuante, uma tendência a lembrar de passados remotos, uma aceitação maior do meu lote no mundo. Como se também as pálpebras da vida caíssem e fossem se formando reentrâncias fundas na alma, por onde transitam emoções que, de esquecidas, parecem novas. Por outro lado, tenho me percebido mais indômita também, como se sem embaraço de realizar o indomado: danço pela casa, canto desafinadamente, rio de mim mesma, erro sem me culpar demais, brigo por bobagens e deixo passar coisas sérias sem esquentar. Fora outras coisas menos publicáveis, é claro. É como se esses 60, nem jovens nem velhos, fossem uma transição sábia para a chegada do incontornável e como se eu já me preparasse – sem sabê-lo bem – para a definição peremptória dessa relação recíproca entre gente e tempo: passar. É, Arnaldo, acho que isso é moderno sim.

Noemi Jaffe

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

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