Por Mariana Mendes
“Viagem em busca de Ana C.” é um diário de bordo escrito durante quatro dias para um trabalho de pesquisa da disciplina de ensaio do curso de pós-graduação do Instituto de Ensino Superior do Vera Cruz, comandado pela escritora Noemi Jaffe. Leia a primeira parte já publicada.
* * *
Ana, hoje passei na sua rua, não na dos seus pais. Na casa da Gávea: Rua das Acácias, 141 casa 2, “Residenciais Leonor”. Tirei uma foto, achei tão bonito o lugar, a fachada azul e branca, mas a foto saiu bem tremida, ninguém vai enxergar claramente, de tão ruim que ficou. Tem uma ladeirona seguindo reto da calçada da sua casa, fizeram até uma escada, bem íngreme. Quantas vezes você subiu aqueles degraus, me pergunto. Não me animei em contar, muito menos em subir.
Mas não é de você que quero falar, muito menos da escada íngreme que sobe da Rua das Acácias até acabar e começar a montanha. Estou escrevendo sobre a sua obra. É por causa dela que estou aqui. Vim atrás de você, porque quero me apropriar da sua escrita. Colá-la em mim. Acho que você não tinha tatuagens, tinha? Eu tenho uma espiral no pé, chama-se koru e representa uma planta, uma espécie de samambaia comum na região onde vivem os povos Maoris, a Polinésia. Como é bonito esse nome: Polinésia. Quero te contar o sentido do koru no meu pé, significa algo como recomeço. E não quero explicar mais nada, pode ser?
Não escrevo tão bem quanto você. Tenho quarenta e dois anos, mas acho que nunca usei um vocabulário rebuscado como o seu, quer dizer, você demonstrava, exibia uma linguagem sofisticada, de quem se letrou muito cedo. Quem sabe, com algum esforço aos quarenta e dois eu consiga usar o mesmo vocabulário que você aos quinze!
Hoje comprei um guarda-chuva, Ana, é lindo. Verde água com serrotes desenhados como se caíssem do céu. O guarda-chuva me protege das serras. Você tinha e perdia seus guarda-chuvas, ou simplesmente escolhia não tê-los? Estou enrolando pra falar da sua obra e é de propósito.
Na verdade, é por que essa é a melhor parte desse meu trabalho em torno de você, quer dizer, aquilo que eu penso e sinto, quando leio você. Sabe quando ficamos guardando o que é bom para o final?
Pra você não ficar brava, vou dizer os dois poemas de que mais gosto e que acho os mais cheios de sentimento e entranha, resultado da combinação de cada uma das palavras:
As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.
e
Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos vazios.
Posso acrescentar um terceiro?
Samba-canção
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone -- taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
Mas tantas, tantas fiz...
Ana, descobri o que você faz, finge a intimidade pela linguagem, mistura autobiografia, biografias alheias, correspondências para destinatários que não existem, como sua tia Nydia, ou como aquela amiga de infância, Gina, para quem você escreve uma carta e, ao que tudo parece, a tal Regina nunca existiu e é de quem você morre de saudade:
Gina,
Será que eu ainda tenho o direito de chamar você assim? Não sei por quê, de repente as recordações do passado começaram a borbulhar dentro de mim. Revi as nossas aventuras no colégio, as tuas idas lá em casa, quando brincávamos com bonecas de papel, simulando mil romances entre o Peter e a Joan; as minhas idas na tua casa, nossas brincadeiras, nossos votos de sempre, permanecermos crianças, Pedro do Rio, o Marcelino e seu rato, morto, a ameixeira Anne Shirley, o Viantarema, o Pentágono, tudo, tudo.
Tudo se mistura e resulta em ficção. Quando leio sua poesia, ou a prosa divertida e livre de tudo, ali tenho a certeza de que o processo era o mesmo, não importava o registro formal. Releio:
Senhor A
Hoje estou de bata, dando bênção com os olhos
Todo milionésimo de segundos sentidos.
Missionário da cozinha.
Minha mulher foi viajar.
Recebo em casa; velha cúmplice esquenta os pratos,
Sou homem rico,
Também choro.
Fumo com o marido no sofá de couro.
Meus olhos doam a este meu casal
De condenados o calor que posso,
O calor de um negócio travado a altas horas,
Garganta ardendo, Colubiasol a mão, ou então um tanto de chá
Um. Não escondo o uísque.
Também não temo mais meu pânico em flor, regado Regiamente.
Na sala ao lado não há mulheres
Falando de Miguelângelo.
Volto ao meu cachimo.
Não recebo em febre torpedos de perguntas,
Mas sim pedidos de adesão.
Devo impor justiça com um gesto da outra mão:
Alimentá-los. Um e outro jogam verde.
Sou mouco, um bispo,
Double-face de cara lisa,
Connoisseur de vícios.
Sirvo uma dobrada fumegante.
O que seria dar benção com os olhos. Poderia ser algo como assentir com o olhar. Noto a profundidade, a falta de conexão aparente, a interrupção. A diversidade toda na mistura de gêneros.
Ana, não me deixe esquecer meu guarda-chuva por aí. Já te falei que ele é lindo? Não é só a cor e os mini-serrotes, não. É o objeto em si. Ele segue um estilo bem clássico com grande cabo de madeira e a ponta também. Será o mais lindo e atual objeto eleito por mim para o dia de hoje. Lembrei-me de um poema teu, mas não consegui localizá-lo agora. É um que você fala da vida dos objetos, sabe qual é?
Costumo dizer ao meu filho, Jorge, que as miniaturas têm vida, ele tem cinco anos. É uma ideia que conforta e ajuda a não me sentir só. O Jorge fixou essa ideia e sempre pergunta: “mãe, isso aqui é uma miniatura?” Pena que eu não consiga reproduzir a entonação quando ele faz essa pergunta, Ana, é a entonação de quem pergunta mais de uma vez por dia, pela simples verificação, sabe? Para ele sou eu quem avalio o que tem ou não tem vida. Será que isso não é um tipo de poesia também? É um jogo entre vida e palavra, uma brincadeira. Quem sabe um dia isso o acabe ajudando a não se sentir tão sozinho?
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Mariana Mendes é formada em Letras e trabalha no departamento de educação da Companhia das Letras desde 1998.