Vida pós-Marielle, por Paulo Roberto Pires

Dando sequência aos depoimentos de nossos autores sobre o momento em que vivemos no país, o escritor, jornalista e editor da revista Serrote, Paulo Roberto Pires, autor de A marca do Z: A vida e os tempos do editor Jorge Zahar, escreveu sobre o primeiro mês sem Marielle Franco e Anderson Gomes.

"Quando escrevo, a execução de Marielle Franco e Anderson Gomes caminha para completar um mês sem solução. É tempo demais para uma investigação e de menos para fechar um luto. Claro está que, mais do que engrossar uma estatística, o brutal assassinato da vereadora do PSOL e de seu motorista foi um recado.Gostaria de esquecer os vídeos caluniosos que jamais serão inteiramente neutralizados e também os comentários pescados aqui e ali depois do crime.

A empatia criada por sua morte não me parece, infelizmente, superior ao ressentimento suscitado pela repercussão do caso. Racismo, moralismo, machismo e tantos outros flagelos fundados na dominação e extermínio da diferença campeiam em todos os níveis. Por insatisfação ou má fé desembargadores e milicianos, donas de casa e estudantes, militares e civis, crentes e ateus se deixam levar pelo fluxo contínuo de propaganda, fake news e doutrinação em redes sociais e templos, em publicações e TVs e até em serviços de streaming. É menos importante a verdade do que aquilo que desejam ouvir.

Assim como o Adolf Eichman de Hannah Arendt, nenhum deles ou delas é um monstro. São cidadãos comuns, de espírito simples ou astucioso, de gravata ou de chinelos. O que há neles de monstruoso foi naturalizado faz tempo, nas favelas vistas como depósito de mão de obra barata e bandidos negros e negras, no massacre protocolar de gays, no assujeitamento da mulher como máquina de sexo e serviços domésticos.

Toda tentativa de alterar esses lugares, por menor que seja, é desqualificada como manipulação, polarização e, hoje ofensa suprema, politização. A mensagem é bem simples: é só cada um ficar no lugar que a história lhe destinou que está tudo certo, seremos de novo uma nação pacificada. Basta de divisão.

A cada admoestação, ato falho de alguém próximo ou diante de provocações abertas, tento me concentrar naquilo que disse o pastor Henrique Vieira no ato inter-religioso realizado uma semana depois do crime:“Negros não voltarão para a senzala, LGBTs não voltarão para o armário, mulheres não voltarão para a submissão e os nossos sonhos não vão ficar num caixão. Porque eles estão vivos. Nós somos a semente, nós somos o futuro, nós somos a revolução”.

Ainda que cético, me recuso a assistir cabisbaixo ao féretro das melhores ideias para um país menos injusto.

Mantê-las vivas é tarefa de todos nós que nos importamos com algo ou alguém que nos diz respeito como sociedade – não apenas individualmente. E algo me diz que, para isso, necessitaremos de muito mais energia do que estivemos acostumados a empregar em tempos de normalidade democrática."

>>A homenagem da autora e antrópologa Karina Kuschnir

>>O depoimento do neurocientista americano Carl Hart

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